terça-feira, 9 de setembro de 2008

P Á G I N A 1
RECURSO ESPECIAL Nº 498.835 - SP (2003⁄0012233-9)
RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI
RECORRENTE : VERA CRUZ SEGURADORA S⁄A
ADVOGADO : CARLOS GERALDO EGYDIO RAMEH E OUTROS
RECORRIDO : BELL HELICOPTER TEXTRON INC
ADVOGADOS : CARLA CHRISTINA SCHNAPP
BRUNO DELGADO CHIARADIA E OUTROS
EMENTA
Processo civil. Embargos de declaração. Ausência de omissão, contradição ou obscuridade. Competência
internacional. Contrato de arrendamento mercantil internacional cuja execução se daria essencialmente em
território brasileiro. Danos oriundos de fato de bem arrendado com defeito oculto.
- Rejeitam-se os embargos de declaração quando ausente omissão, contradição ou obscuridade a ser
sanada.
- A autoridade judiciária brasileira tem competência para apreciar ação de indenização proposta por
seguradora brasileira, sub-rogada nos direitos de arrendatária também brasileira, contra arrendadora norteamericana
com o objetivo de ser ressarcida de danos oriundos de alegado inadimplemento de contrato de
arrendamento mercantil cuja execução se daria essencialmente em território brasileiro.
Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa parte, provido.
ACÓRDÃO
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da TERCEIRA TURMA do Superior
Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos,
prosseguindo o julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro Castro Filho, por unanimidade, conhecer em
parte do recurso especial e, nessa parte, dar-lhe provimento. Os Srs. Ministros Castro Filho, Antônio de
Pádua Ribeiro e Carlos Alberto Menezes Direito votaram com a Sra. Ministra Relatora.
Brasília (DF), 12 de abril de 2005(data do julgamento).
MINISTRA NANCY ANDRIGHI
Relatora
RECURSO ESPECIAL Nº 498.835 - SP (2003⁄0012233-9)
RECORRENTE : VERA CRUZ SEGURADORA S⁄A
ADVOGADO : CARLOS GERALDO EGYDIO RAMEH E OUTROS
RECORRIDO : BELL HELICOPTER TEXTRON INC
ADVOGADOS : CARLA CHRISTINA SCHNAPP
BRUNO DELGADO CHIARADIA E OUTROS
RELATORA: MINISTRA NANCY ANDRIGHI
RELATÓRIO

Cuida-se do recurso especial interposto por VERA CRUZ SEGURADORA S⁄A, fundamentado na alínea "a" do permissivo constitucional, em ação de indenização proposta pela recorrente contra BELL HELICOPTER TEXTRON INC.

Narram os autos que a recorrida, na posição de arrendadora, celebrou contrato de arrendamento mercantil internacional com a Agropecuária JL, arrendatária, cujo bem arrendado era um helicóptero denominado
BELL, Modelo 407. A arrendatária contratou determinado piloto para que conduzisse o helicóptero dos Estados Unidos da América até o Brasil. A arrendatária celebrou ainda contrato de seguro com a recorrente no qual estavam cobertos danos causados a terceiros, inclusive quaisquer danos causados ao piloto que conduziria a aeronave.

Sucedeu-se que, por alegados defeitos decorrentes de falha mecânica, o helicóptero veio a cair no litoral das Bahamas, próximo à Ilha de Santo André. O piloto sofreu ferimentos e a recorrente, seguradora que era contratada pela arrendatária, pagou as despesas médicas e hospitalares do piloto acidentado.

Propôs, então, a recorrente a presente ação contra a arrendadora (fabricante do helicóptero) com o objetivo de ressarcir-se dos mencionados prejuízos.

A recorrida ofereceu exceção de incompetência, que não foi acolhida em 1º grau de jurisdição.
Inconformada com essa decisão interlocutória, a recorrida interpôs agravo de instrumento para o 1º TACSP.

O acórdão restou assim ementado:
"COMPETÊNCIA INTERNACIONAL - RÉU NÃO DOMICILIADO NO PAÍS - IMPREVISIBILIDADE DE CUMPRIMENTO DE OBRIGAÇÃO NO BRASIL - AÇÃO NÃO ORIGINADA DE FATO OCORRIDO OU AQUI PRATICADO - CASO DE AÇÃO REGRESSIVA AJUIZADA POR SEGURADORA BRASILEIRA CONTRA PESSOA JURÍDICA ESTRANGEIRA INDIGITADA CULPADA POR ILÍCITO OCORRIDO NO EXTERIOR - INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA BRASILEIRA - RECURSO PROVIDO." fl. 114

Os embargos de declaração interpostos pela recorrente foram rejeitados.
Inconformada, interpôs o presente recurso especial com a alegação de ofensa aos seguintes dispositivos legais:
I - art. 161 e 535, II, do CPC, pois, mesmo após a interposição de embargos de declaração, o Tribunal de origem não se manifestou a respeito de determinados dispositivos legais mencionados pela recorrente e manteve contradições e omissão;
II - arts. 9º, 12 da Lei de Introdução ao Código Civil, 88, I e II, 100, V, do CPC e 988 do CC⁄16, porquanto a tem a autoridade judiciária brasileira competência para apreciar a ação que propôs, pois: a) a recorrida tem representante no Brasil, Líder Taxi Aéreo Ltda, conforme consta de sua página na internet, sendo que essa representante recebeu a citação, considerada válida e eficaz ; b) a obrigação de indenização deveria ser cumprida no Brasil.

Em contra-razões, sustenta a recorrida o acerto do acórdão recorrido porque se trata de obrigação extracontratual.
Inadmitido o recurso especial no prévio juízo de admissibilidade na origem, determinei a subida dos seus autos em sede do posterior agravo de instrumento.
É o relatório.

RECURSO ESPECIAL Nº 498.835 - SP (2003⁄0012233-9)
RELATORA: MINISTRA NANCY ANDRIGHI

VOTO

As questões levantadas no presente recurso especial consistem em saber:
I) se o 1º TACSP rejeitou indevidamente os embargos de declaração interpostos pela recorrente em 2º grau de jurisdição;
II) se é competente a Justiça Brasileira para apreciar pedido de indenização inserto em ação proposta por seguradora brasileira (recorrente) com o objetivo de obter a condenação de sociedade empresária norteamericana (recorrida) ao ressarcimento de valores despendidos por aquela em decorrência de alegado inadimplemento em contrato de arrendamento mercantil celebrado entre a seguradora-autora-recorrente e outrem (segurada-arrendatária), inadimplemento esse consistente em vício oculto no bem arrendado.
I – Da rejeição dos embargos de declaração: A recorrente, nos embargos de declaração interpostos em 2º grau de jurisdição, alegou a existência de contradição e omissão no acórdão embargado. Contradição quanto à constatação de não possuir a recorrida domicílio do país. Omissão quanto à aplicação do § único do art. 100 do CPC.

Ora, tanto em sede de apelação quanto em sede de embargos de declaração, o 1º TACSP apreciou de forma clara essas questões levantadas pela recorrente, rejeitando-as, situação que não configura contradição nem omissão, motivo pelo qual foram os embargos de declaração devidamente rejeitados.
II – Da competência da Justiça Brasileira:
Cuida-se de ação de regresso proposta por seguradora que indenizou danos decorrentes de acidente aéreo, obrigação que cumpriu por decorrer do contrato de seguro que firmou com a arrendatária-segurada, fulcrada na sub-rogação nos direitos da credora.
O contrato de seguro está garantindo danos que porventura decorreram de contrato de arrendamento mercantil internacional subscrito pela arrendadora norte-americana, recorrida, e arrendatária brasileira, Agropecuária JL, não integrante dessa relação processual. A lide está posta entre a seguradora com sede no Brasil e a sociedade empresária norte-americana – arrendadora no pólo passivo. Trata-se, pois, de responsabilidade civil calcada em contrato de seguro atrelado e garantidor de contrato de arrendamento mercantil internacional.
Para fins de fixação de competência, há de ser observado que o contrato firmado entre arrendadora norteamericana e arrendatária brasileira avença execução diferida e que a parte substancial das obrigações dele decorrentes serão cumpridas em território brasileiro, como o exercício da posse e o registro da aeronave, conforme se constata dos fatos desenhados na origem.

Pertinente se mostra a transcrição do seguinte trecho do voto-vencido do acórdão recorrido:
"Consoante se observa do contrato trasladado às fls. 63⁄69, especialmente em sua cláusula
'Registro⁄Localização', os equipamentos e a comprovação do arrendamento deverão durante todo o período contratual estar registrados junto ao órgão brasileiro equivalente a Administração Federal de Aviação dos Estados Unidos.

Nenhum dúvida, portanto, que o arrendamento foi feito para que a aeronave navegasse no território brasileiro, onde o pagamento do aluguel seria efetuado e onde a manutenção e conservação também seria feita.Embora o contrato tenha sido celebrado nos Estados Unidos da América, no Brasil é que a obrigação seria cumprida.

Pelo leasing, a agravante comprometeu-se a permitir o uso pacífico do bem arrendado, com promessa de venda ao final, sendo que essas duas obrigações deveriam ser cumpridas no Brasil.
O arrendatário apenas pagaria o aluguel mensal, para ao final exercer ou não a faculdade de aquisição.

Entendo, portanto, que se as obrigações assumidas deveriam ser cumpridas no Brasil, a regra incidente é a do art. 12, segunda parte, da Lei de Introdução ao Código Civil, combinado com o artigo 88, II, do Código de Processo Civil." (fls. 118⁄119)
Importante frisar que a competência da autoridade brasileira, embora concorrente que é, não se afasta pelo fato de o contrato ter sido celebrado nos Estados Unidos da América ou pelo fato de a arrendadora lá ser domiciliada.
A arrendadora assumiu o dever de propiciar à arrendatária o uso do helicóptero em perfeitas condições, obrigação que restou inadimplida, considerando a existência de suposto defeito oculto que ocasionou a queda da aeronave nas Bahamas, ou seja, antes mesmo da entrada do bem no seu local de destino, causando graves lesões ao piloto.
Trata-se, pois, de pedido de regresso de importâncias oriundas de violação a cláusula de contrato, o qual prevê sua execução no território brasileiro, sendo aplicável à espécie o inciso II do art. 88 do CPC.

Precisa a lição doutrinária do Prof. Arruda Alvim:
"No atual direito brasileiro (art. 88, III) quer o foro do local onde se deve realizar o cumprimento da obrigação (art. 88, II), quer aquele (Brasil) onde ela se constituiu (art. 88, III) são competentes (correlação entre os arts. 88, III e 100, IV, d e 88, II). É certo que se a ação for proposta com base no art. 88, II, há que se desconsiderar o domicílio do réu, por ser irrelevante. Ambos, autor e réu, por outro lado, poderão ser domiciliados no exterior, nos casos de ação proposta com base no n. II do art. 88, justamente porque de competência concorrente se trata.
(...)
Na exegese da atual lei, que é regra de competência internacional, devemos observar que o n. II, do art. 88, não disciplina a hipótese de foro do contrato, mas sim, exclusivamente, do foro do local do cumprimento; já o foro do contrato pode ser considerado como existente, em face da redação do n. III, do mesmo art. 88, pois na realidade, o local da celebração do contrato foi erigido como determinador da competência internacional, dado que é um 'ato praticado no Brasil'. Conquanto não exista explicitamente previsão de foro contratual, propriamente dito, em tema de competência internacional, existe tal previsão – pela força de compreensão do conceito de contrato no de ato praticado no Brasil, art. 88, III – ao nível de competência
internacional. Segue-se, por tais distinções, que: 1º) na competência interna não há previsão de foro do contrato; 2º) diferentemente, porém, o fato de firmar-se no Brasil um contrato, dá competência à autoridade brasileira para conhecer das ações fundadas em tal contrato, pela circunstância única de sua feitura em nosso território. Entretanto, se competente é a autoridade judiciária brasileira, para o conhecimento de ações respeitantes ao contrato, não o será o foro onde foi firmado o contrato (forum contractus), inexistente, entre nós, devendo-se, aqui, ao nível de competência interna, aplicarem-se as regras gerais" (Competência internacional in Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo n. 11, dezembro de 1977. São Paulo: Centro de Estudos – pp. 196⁄198).

É vedado às partes, por vontade expressa em contrato, dispor sobre competência concorrente do juiz brasileiro, porque, segundo o Prof. José Ignácio Botelho de Mesquita, as "normas que definem a extensão da jurisdição de um Estado são normas diretamente fundadas na soberania nacional e, por isto, não se acham submetidas à vontade das partes interessadas. Como disse Chiovenda, é 'evidente que a jurisdição, que o Estado se arroga, inspirando-se em supremos interesses nacionais, não pode representar objeto de disposição da parte aos litigantes' (Instituições, 1943 I⁄70). Os limites da jurisdição nacional não podem, por
isto, ser ampliados, nem restringidos, por vontade das partes. As partes podem modificar a competência territorial mas não podem modificar a extensão da jurisdição nacional. Assim, a propositura da ação perante um juiz internacionalmente incompetente, mesmo que sem oposição do réu, não prorroga a competência internacional desse juiz; do mesmo modo a propositura da ação perante a autoridade judiciária de um Estado internacionalmente competente para causa não previne a jurisdição deste contra a de autoridade de outro Estado que, pelas leis do primeiro, também seja (concorrentemente) competente a mesma causa.
Salvo convenção internacional em contrário, é inoperante a litispendência estrangeira (CDC art. 90), de modo que a mesma causa pode ser simultaneamente proposta perante as autoridades judiciárias de dois Estados diferentes. As normas de competência internacional são, pois, normas de ordem pública. Por isto mesmo, não se aplica à competência internacional a conhecida classificação da competência interna que a divide em competência absoluta e relativa. Na verdade, 'o fato de certa causa ser estranha à jurisdição do Estado não é a rigor caso de incompetência (significa, no fundo, a negação da ação) e, talvez, só por
analogia se lhe possa aplicar a regra de incompetência ratione materiae (Liebman, ob. cit., pp. 24 e 25). Se por analogia quiséssemos aplicar esta classificação à competência internacional, teríamos que dizer que a competência internacional é sempre absoluta, ainda quando a a lei admita a competência concorrente de outro Estado" (Da Competência internacional e dos princípios que a informam in Revista do Processo n. 50, abril-junho de 1988 - pp. 52⁄53), lição adotada no percuciente voto do Min. Barros Monteiro no REsp n.
251.438⁄RJ, em cuja ementa, no que interessa, anotou:

"Caso em que empresas as garantes se sujeitam à jurisdição brasileira, nos termos do disposto no art. 88,
inc. II, do CPC, pois no Brasil é que deveria ser cumprida a obrigação principal. Competência internacional
concorrente da autoridade judiciária brasileira, que não é suscetível de ser arredada pela vontade das
partes."
Forte em tais razões, conheço em parte do recurso especial e, nessa, dou-lhe provimento para reconhecer a
violação ao inc. II do art. 88 do CPC e, por conseguinte, declarar a competência da autoridade judiciária
brasileira para processar e julgar a aludida ação.
CERTIDÃO DE JULGAMENTO
TERCEIRA TURMA
Número Registro: 2003⁄0012233-9 RESP 498835 ⁄ SP
Números Origem: 10170499 200200383037
PAUTA: 04⁄09⁄2003 JULGADO: 04⁄09⁄2003
Relatora
Exma. Sra. Ministra NANCY ANDRIGHI
Presidente da Sessão


Exmo. Sr. Ministro ANTÔNIO DE PÁDUA RIBEIRO
Subprocuradora-Geral da República
Exma. Sra. Dra. ARMANDA SOARES FIGUEIREDO
Secretária
Bela. SOLANGE ROSA DOS SANTOS VELOSO
AUTUAÇÃO
RECORRENTE : VERA CRUZ SEGURADORA S⁄A
ADVOGADO : CARLOS GERALDO EGYDIO RAMEH E OUTROS
RECORRIDO : BELL HELICOPTER TEXTRON INC
ADVOGADOS : CARLA CHRISTINA SCHNAPP
BRUNO DELGADO CHIARADIA E OUTROS
ASSUNTO: Civil - Responsabilidade Civil - Indenização - Acidente
CERTIDÃO
Certifico que a egrégia TERCEIRA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta
data, proferiu a seguinte decisão:
"Após o voto da Sra. Ministra Relatora, conhecendo em parte do recurso especial e, nessa parte dando-lhe
provimento, pediu vista o Sr. Ministro Castro Filho."
Aguardam os Srs. Ministros Antônio de Pádua Ribeiro, Ari Pargendler e Carlos Alberto Menezes Direito.
O referido é verdade. Dou fé.

Brasília, 04 de setembro de 2003

SOLANGE ROSA DOS SANTOS VELOSO
Secretária
RECURSO ESPECIAL Nº 498.835 - SP (2003⁄0012233-9)
RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI
RECORRENTE : VERA CRUZ SEGURADORA S⁄A
ADVOGADO : CARLOS GERALDO EGYDIO RAMEH E OUTROS
RECORRIDO : BELL HELICOPTER TEXTRON INC
ADVOGADOS : CARLA CHRISTINA SCHNAPP
BRUNO DELGADO CHIARADIA E OUTROS

VOTO-VISTA

O EXMO. SR. MINISTRO CASTRO FILHO: Trata-se de recurso especial interposto por VERA CRUZ SEGURADORA S⁄A, com fulcro no artigo 105, III, alínea "a" do permissivo constitucional, contra acórdão da Sétima Câmara do Primeiro Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo, proferido nos autos da ação de indenização proposta pela recorrente em relação a BELL HELICOPTER TEXTRON INC.
O acórdão restou assim ementado:
“COMPETÊNCIA INTERNACIONAL - RÉU NÃO DOMICILIADO NO PAÍS - IMPREVISIBILIDADE DE CUMPRIMENTO DA OBRIGAÇÃO NO BRASIL - AÇÃO NÃO ORIGINADA DE FATO OCORRIDO OU AQUI PRATICADO - CASO DE AÇÃO DE INDENIZAÇÃO REGRESSIVA AJUIZADA POR SEGURADORA BRASILEIRA CONTRA PESSOA JURÍDICA ESTRANGEIRA INDIGITADA CULPADA POR ILÍCITOOCORRIDO NO EXTERIOR - INCOMPETÊNCIA DA JUSTIÇA BRASILEIRA - RECURSO PROVIDO."

Ao relatar o feito, a eminente Ministra Nancy Andrighi proferiu seu voto conhecendo em parte do recurso especial e, nessa parte, dando-lhe provimento para reconhecer a violação ao inciso II, do artigo 88 do Código de Processo Civil e, por conseguinte, declarar a competência da autoridade judiciária brasileira para processar e julgar a aludida ação.
A fim de melhor examinar a controvérsia, solicitei vista dos autos.
Sobre o tema, a eminente relatora assim se pronunciou, verbis:

"As questões levantadas no presente recurso especial consistem em saber:
I) se o 1° TACSP rejeitou indevidamente os embargos de declaração interpostos pela recorrente em 2° gr au
de jurisdição;
II) se é competente a Justiça Brasileira para apreciar pedido de indenização inserto em ação proposta por seguradora brasileira (recorrente) com o objetivo de obter a condenação de sociedade empresária norteamericana (recorrida) ao ressarcimento de valores despendidos por aquela em decorrência de alegado inadimplemento em contrato de arrendamento mercantil celebrado entre a seguradora-autora-recorrente e outrem (segurada-arrendatária), inadimplemento esse consistente em vício oculto no bem arrendado.

I - Da rejeição dos embargos de declaração:
A recorrente, nos embargos de declaração interpostos em 2° grau de jurisdição, alegou a existência de contradição e omissão no acórdão embargado. Contradição quanto à constatação de não possuir a recorrida domicílio no país. Omissão quanto à aplicação do parágrafo único do art. 100 do CPC.

Ora, tanto em sede de apelação quanto em sede de embargos de declaração, o 1° TACSP apreciou deforma clara essas questões levantadas pela recorrente, rejeitando-as, situação que não configura contradição nem omissão, motivo pelo qual foram os embargos de declaração devidamente rejeitados.

II - Da competência da Justiça Brasileira:
Cuida-se de ação de regresso proposta por seguradora que indenizou danos decorrentes de acidente aéreo, obrigação que cumpriu por decorrer do contrato de seguro que firmou com a arrendatária-segurada, fulcrada na sub-rogação nos direitos da credora.

O contrato de seguro está garantindo danos que porventura decorreram de contrato de arrendamento mercantil internacional subscrito pela arrendadora norte-americana, recorrida, e arrendatária brasileira, Agropecuária JL, não integrante dessa relação processual. A lide está posta entre a seguradora com sede no Brasil e a sociedade empresária norte-americana - arrendadora no pólo passivo. Trata-se, pois, de responsabilidade civil calcada em contrato de seguro atrelado e garantidor de contrato de arrendamento mercantil internacional.

Para fins de fixação de competência, há de ser observado que o contrato firmado entre arrendadora norteamericana
e arrendatária brasileira avença execução diferida e que a parte substancial das obrigações dele
decorrentes serão cumpridas em território brasileiro, como o exercício da posse e o registro da aeronave, conforme se constata dos fatos desenhados na origem. Pertinente se mostra a transcrição do seguinte trecho do voto-vencido do acórdão recorrido:
'Consoante se observa do contrato trasladado às fls. 63⁄69, especialmente em sua cláusula
'Registro⁄Localização', os equipamentos e a comprovação do arrendamento deverão durante todo o período contratual estar registrados junto ao órgão brasileiro equivalente a Administração Federal de Aviação dos Estados Unidos.

Nenhuma dúvida, portanto, que o arrendamento foi feito para que a aeronave navegasse no território brasileiro, onde o pagamento do aluguel seria efetuado e onde a manutenção e conservação também seria feita. Embora o contrato tenha sido celebrado nos Estados Unidos da América, no Brasil é que a obrigação seria cumprida.

Pelo leasing, a agravante comprometeu-se a permitir o uso pacífico do bem arrendado, com promessa de venda ao final, sendo que essas duas obrigações deveriam ser cumprida no Brasil.
O arrendatário apenas pagaria o aluguel mensal, para ao final exercer ou não a faculdade de aquisição.

Entendo, portanto, que se as obrigações assumidas deveriam ser cumpridas no Brasil, a regra incidente é a do art. 12, segunda parte, da Lei de Introdução ao Código Civil, combinado com o artigo 88, II, do Código de Processo Civil.' (fls. 118⁄119) Importante frisar que a competência da autoridade brasileira, embora concorrente que é, não se afasta pelo fato de o contrato ter sido celebrado nos Estados Unidos da América ou pelo fato de a arrendadora lá ser domiciliada.

A arrendadora assumiu o dever de propiciar à arrendatária o uso do helicóptero em perfeitas condições, obrigação que restou inadimplida, considerando a existência de suposto defeito oculto que ocasionou a queda da aeronave nas Bahamas, ou seja, antes mesmo da entrada do bem no seu local de destino, causando graves lesões ao piloto.

Trata-se, pois, de pedido de regresso de importâncias oriundas de violação a cláusula de contrato, o qual prevê sua execução no território brasileiro, sendo aplicável à espécie o inciso II do art. 88 do CPC. Precisa a lição doutrinária do Prof. Arruda Alvim:

'No atual direito brasileiro (art. 88, III) quer o foro do local onde se deve realizar o cumprimento da obrigação (art. 88, II), quer aquele (Brasil) onde ela se constituiu (art. 88, III) são competentes (correlação entre os arts. 88, III e 100, IV, d e 88, II). É certo que se a ação for proposta com base no art. 88, II, há que se desconsiderar o domicílio do réu, por ser irrelevante. Ambos, autor e réu, por outro lado, poderão ser domiciliados no exterior, nos casos de ação proposta com base no n. II do art. 88, justamente porque de competência concorrente se trata.
(...)
Na exegese da atual lei, que é regra de competência internacional, devemos observar que o n. II, do art. 88, não disciplina a hipótese de foro do contrato, mas sim, exclusivamente, do foro do local do cumprimento; já o foro do contrato pode ser considerado como existente, em face da redação do n. III, do mesmo art. 88, pois na realidade, o local da celebração do contrato foi erigido como determinador da competência internacional, dado que é um 'ato praticado no Brasil'. Conquanto não existe explicitamente previsão de foro contratual, propriamente dito, em tema de competência internacional, existe tal previsão - pela força de compreensão do conceito de contrato no de ato praticado no Brasil, art. 88, III - ao nível de competência internacional. Segue-se, por tais distinções, que: 1°) na competência interna não há previsão de foro do contrato; 2°) diferentemente, porém, o fato de firmar-se no Brasil um contrato, dá competência à autoridade brasileira para conhecer das ações fundadas em tal contrato, pela circunstância única de sua feitura em nosso território. Entretanto, se competente é a autoridade judiciária brasileira, para o conhecimento de ações respeitantes ao contrato, não o será o foro onde foi firmado o contrato (forum contractus), inexistente, entre nós, devendo-se, aqui, ao nível de competência interna, aplicarem-se as regras gerais' (Competência internacional in Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo n. 11, dezembro de 1977. São Paulo: Centro de Estudos - pp. 196⁄198).

É vedado às partes, por vontade expressa em contrato, dispor sobre competência concorrente do juiz brasileiro, porque, segundo o Prof. José Ignácio Botelho de Mesquita, as 'normas que definem a extensão da jurisdição de um Estado são normas diretamente fundadas na soberania nacional e, por isto, não se acham submetidas à vontade das partes interessadas. Como disse Chiovenda, é 'evidente que a jurisdição, que o Estado se arroga, inspirando-se em supremos interesses nacionais, não pode representar objeto de disposição da parte aos litigantes' (Instituições, 1943 I⁄70). Os limites da jurisdição nacional não podem, por isto, ser ampliados, nem restringidos, por vontade das partes. As partes podem modificar a competência territorial mas não podem modificar a extensão da jurisdição nacional. Assim, a propositura da ação perante um juiz internacionalmente incompetente, mesmo que sem oposição do réu, não prorroga a competência internacional desse juiz; do mesmo modo a propositura da ação perante a autoridade judiciária de um Estado internacionalmente competente para a causa não previne a jurisdição deste contra a de autoridade de outro Estado que, pelas leis do primeiro, também seja (concorrentemente) competente a mesma causa.

Salvo convenção internacional em contrário, é inoperante a litispendência estrangeira (CDC art. 90), de modo que a mesma pode ser simultaneamente proposta perante as autoridades judiciárias de dois Estados diferentes. As normas de competência internacional são, pois, normas de ordem pública. Por isto mesmo, não se aplica à competência internacional a conhecida classificação da competência interna que a divide em competência absoluta e relativa. Na verdade, 'o fato de certa causa ser estranha à jurisdição do Estado não é a rigor caso de incompetência (significa, no fundo, a negação da ação) e, talvez, só por analogia se lhe possa aplicar a regra de incompetência ratione materiae (Liebman, ob. cit., pp. 24 e 25). Se por analogia quiséssemos aplicar esta classificação à competência internacional, teríamos que dizer que a competência internacional é sempre absoluta, ainda quando a lei admita a competência concorrente de outro Estado' (Da Competência internacional e dos princípios que a informam in Revista do Processo n. 50, abril-junho de 1988 - pp. 52⁄53), lição adotada no percuciente voto do Min. Barros Monteiro no REsp n. 251.438⁄RJ, em cuja ementa, no que interessa, anotou:
'Caso em que empresas as garantes se sujeitam à jurisdição brasileira, nos termos do disposto no art. 88, inc. II, do CPC, pois no Brasil é que deveria ser cumprida a obrigação principal. Competência internacional concorrente da autoridade judiciária brasileira, que não é suscetível de ser arrendada pela vontade das partes.'

Forte em tais razões, conheço em parte do recurso especial e, nessa, dou-lhe provimento para reconhecer a violação do inc. II do art. 88 do CPC e, por conseguinte, declarar a competência da autoridade judiciária brasileira para processar e julgar a aludida ação." Tenho como escorreita a decisão supratranscrita, uma vez que está assente com a doutrina e a jurisprudência deste Tribunal Superior.

Colhe-se dos autos que a recorrente, empresa seguradora brasileira, ajuizou ação regressiva em face da recorrida em virtude de acidente ocorrido com aeronave arrendada por uma segurada sua, a empresa brasileira Agropecuária JL que, por sua vez, havia celebrado contrato de arrendamento mercantil com a recorrida.

A aeronave seria conduzida de Miami-Flórida para o Brasil pelo Sr. Kamal el Nashar, piloto brasileiro, contratado pela segurada. A recorrente foi contratada para segurar a aeronave de qualquer sinistro, inclusive danos causados ao piloto brasileiro.

Durante o vôo de traslado para o Brasil, devido a pane na aeronave, decorrente de falha mecânica, ela caiu no litoral das Bahamas, tendo o piloto sido socorrido e se submetido a diversas cirurgias e tratamentos, todos custeados pela recorrente.

A responsabilidade da ora recorrida, fabricante da aeronave, ficou comprovada através de perícia realizada por órgão do Governo Norte Americano denominado "Federal Aviation Administration", tendo havido acordo com o piloto brasileiro, confessando a sua responsabilidade e lhe pagando US$ 6.000.000 (seis milhões de dólares americanos) a título de indenização, acordo este homologado judicialmente perante a Corte de Justiça Norte Americana.

A recorrida, citada, apresentou contestação e exceção de incompetência, sustentando que, por se tratar de ação de reparação de danos, o foro competente para processar e julgar o feito seria a Corte Federal Norte Americana, no Estado da Flórida, por se tratar de competência territorial prevista no artigo 100, inciso V, alínea "a", do Código de Processo Civil.

Apresentada impugnação à exceção argüida, aduziu-se, em síntese, que a ação regressiva não se
subsume à norma insculpida no aludido artigo 100, V, "a", do CPC, mas, sim, aos artigos 12 da Lei de Introdução ao Código Civil e 88, inciso II, do estatuto processual civil, sendo competente o foro de São Paulo para processar e julgar a aludida ação regressiva, cidade onde está domiciliada a segurada. Ponderou, ainda, que a obrigação principal estabelecida entre a recorrida e a empresa segurada da recorrente, relativas à operação da aeronave, sua manutenção e pagamento de aluguel, relacionados ao Contrato de arrendamento seriam cumpridas no Brasil.

O juiz de primeiro grau julgou improcedente a exceção de incompetência, declarando competente a justiça brasileira, por entender que a obrigação deve ser cumprida no Brasil.
Irresignada, a recorrida interpôs agravo de instrumento, tendo o Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo julgado procedente o recurso, reformando, por maioria, o decisum monocrático.

Após a rejeição dos embargos de declaração opostos pela ora recorrente, foi interposto recurso especial pela alínea "a", o qual restou inadmitido, tendo o mesmo subido a esta Corte em face do provimento dado ao agravo de instrumento, então interposto.

Primeiramente, cabe esclarecer que a recorrida tem agente no Brasil, qual seja, a Líder Táxi Aéreo Ltda, em São Paulo, a qual foi devidamente citada, tendo comparecido a juízo para responder ao processo, mantendo a recorrida, Bell Helicopter Textron, em sua página na Internet, a menção à aludida empresa como sua agente no Brasil.

Entendo que o disposto inserto no artigo 100, inciso V, alínea "a", do Código de Processo Civil não tem aplicação ao caso sub examen, uma vez que se trata de competência interna territorial, aplicando-se à espécie as regras da Lei de Introdução ao Código Civil e as de competência internacional.

Com efeito, como bem ressaltou a eminente Ministra relatora, fazendo alusão ao voto vencido do Juiz Nelson Ferreira, que reconheceu a competência da jurisdição brasileira, se as obrigações assumidas deveriam ser cumpridas no Brasil, a regra incidente é a do artigo 12 da LICC combinado com o artigo 88, II, do CPC. Realmente, é de se não perder de vista que, além de ter sido o contrato de arrendamento feito para que a aeronave navegasse no território brasileiro, o pagamento do aluguel, a manutenção e conservação seriam aqui realizados, bem como seria feito o registro dos equipamentos e comprovação do arredamento, durante todo o período contratual, junto ao órgão brasileiro equivalente à Administração Federal de Aviação dos Estados Unidos da América. Enfim, a obrigação seria cumprida no Brasil, local também onde a aeronave seria usada e onde - frise-se - a promessa de venda, ao final, poderia ser exercida.
Finalmente, penso que, se fosse a hipótese de aplicação da competência territorial, não seria o inciso V, letra "a", do artigo 100 do Código de Processo Civil a norma incidente, mas sim o seu parágrafo único, que trata do foro do domicílio do autor, em alternativa ao local do fato, sendo aquele (domicílio do autor) uma faculdade exclusiva do proponente da demanda.
Com estas considerações, acompanho o brilhante voto da eminente relatora, para também dar provimento ao recurso especial, declarando a competência da autoridade judiciária brasileira para processar e julgar aação.
É o voto.

Ministro CASTRO FILHO
CERTIDÃO DE JULGAMENTO
TERCEIRA TURMA
Número Registro: 2003⁄0012233-9 RESP 498835 ⁄ SP
Números Origem: 10170499 200200383037
PAUTA: 04⁄09⁄2003 JULGADO: 12⁄04⁄2005
Relatora
Exma. Sra. Ministra NANCY ANDRIGHI
Presidenta da Sessão
Exma. Sra. Ministra NANCY ANDRIGHI
Subprocurador-Geral da República
Exmo. Sr. Dr. PEDRO HENRIQUE TÁVORA NIESS
Secretário
Bel. MARCELO FREITAS DIAS
AUTUAÇÃO
RECORRENTE : VERA CRUZ SEGURADORA S⁄A
ADVOGADO : CARLOS GERALDO EGYDIO RAMEH E OUTROS
RECORRIDO : BELL HELICOPTER TEXTRON INC
ADVOGADOS : CARLA CHRISTINA SCHNAPP
BRUNO DELGADO CHIARADIA E OUTROS
ASSUNTO: Civil - Responsabilidade Civil - Indenização - Acidente
CERTIDÃO

Certifico que a egrégia TERCEIRA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão:

Prosseguindo o julgamento, após o voto-vista do Sr. Ministro Castro Filho, a Turma, por unanimidade, conheceu em parte, do recurso especial e, nessa parte, deu-lhe provimento. Os Srs. Ministros Castro Filho, Antônio de Pádua Ribeiro e Carlos Alberto Menezes Direito votaram com a Sra. Ministra Relatora.


Brasília, 12 de abril de 2005
MARCELO FREITAS DIAS
Secretário

Nenhum comentário: