terça-feira, 9 de setembro de 2008

1D - RE 543943 STF

RE 543943 / PR - PARANÁ
RECURSO EXTRAORDINÁRIO
Relator(a): Min. CELSO DE MELLO
Julgamento: 11/04/2008
Publicação
DJe-075 DIVULG 25/04/2008 PUBLIC 28/04/2008

Partes

RECTE.(S): MUNICÍPIO DE DR ULYSSES
ADV.(A/S): ARNALDO DAVID BARACAT E OUTRO(A/S)
RECDO.(A/S): CONSÓRCIO ICA/CPC/ETESCO
ADV.(A/S): ABEL SIMÃO AMARO E OUTRO(A/S)
ADV.(A/S): MARCELO REINECKEN DE ARAÚJO

Despacho

DECISÃO: O presente recurso extraordinário foi interposto contra acórdão, que, confirmado, em sede de embargos de declaração (fls. 284/293), pelo E. Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, está assim ementado (fls. 263):

“REEXAME NECESSÁRIO E APELAÇÃO CÍVEL - MANDADO DE SEGURANÇA PREVENTIVO - ABSTENÇÃO DE ATO PARA COBRANÇA DO ISS - GASODUTO BRASIL-BOLÍVIA - ISENÇÃO TRIBUTÁRIA EM FACE DA REALIZAÇÃO DO ACORDO INTERNACIONAL RATIFICADO PELO CONGRESSO NACIONAL (DEC. N.º 2142/97 E DEC. LEI N.º 128/96) - NORMA TRIBUTÁRIA INTERNA - COMPETÊNCIA DOS ENTES POLÍTICOS EM EDITAR LEIS ESPECÍFICAS DE ISENÇÃO, ENQUANTO VIGORAR O ACORDO - ART. 98 CTN -
DECISÃO MANTIDA - RECURSO DESPROVIDO. 1. Os tratados e as convenções internacionais ratificados pelo Congresso Nacional passam a ser também normas de direito interno e podem revogar ou modificar a legislação tributária interna. 2. 'Não há discricionariedade do poder público municipal em conceder ou não a isenção nos moldes preconizados no acordo tributário
internacional firmado entre o governo federal e o governo da Bolívia, pelo que se impõe em reconhecer como nulo o lançamento efetuado em contrariedade ao definido no Decreto nº 2142/97, a rigor do artigo 98 do Código Tributário Nacional'.” A parte recorrente sustenta que o acórdão ora impugnado teria transgredido preceitos inscritos na Constituição da República.
Entendo não assistir razão à parte ora recorrente, pois não vislumbro qualquer eiva de inconstitucionalidade na outorga de isenção de tributo municipal (ISS, no caso) prevista no Acordo para Isenção de Impostos Relativos à Implementação do Projeto
do Gasoduto Brasil-Bolívia. Com efeito, tenho para mim que o preceito normativo inscrito no art. 151, III, da vigente Constituição há de ser interpretado na perspectiva do modelo institucional que caracteriza o Estado Federal brasileiro. Todos sabemos que a Constituição da República proclama, na complexa estrutura política que dá configuração ao modelo federal de
Estado, a coexistência de comunidades jurídicas responsáveis pela pluralização de ordens normativas próprias que se distribuem segundo critérios de discriminação material de competências fixadas pelo texto constitucional. O relacionamento normativo entre essas instâncias de poder - União, Estados-membros, Distrito Federal e Municípios - encontra fundamento na Constituição da República, que representa, no contexto político-institucional do Estado brasileiro, a expressão formal do pacto federal, consoante ressaltam, em autorizado magistério, eminentes doutrinadores (PINTO FERREIRA, “Comentários à Constituição Brasileira”, vol. 1/374, 1989, Saraiva; MICHEL TEMER, “Elementos de Direito Constitucional”, p. 55/59, 5ª ed., 1989, RT; CELSO RIBEIRO BASTOS/IVES GANDRA MARTINS, “Comentários à Constituição do Brasil”, vol. 1/216-221, 1988, Saraiva; JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, “Comentários à Constituição Brasileira de 1988”, vol. I/131, item n. 38, 1989, Forense
Universitária). O estatuto constitucional, em que reside a matriz do pacto federal, estabelece, entre a União e as pessoas políticas locais, uma delicada relação de equilíbrio, consolidada num sistema de discriminação de competências estatais, de que resultam - considerada a complexidade estrutural do modelo federativo - ordens jurídicas parciais e coordenadas entre si,
subordinadas à comunidade total, que é o próprio Estado Federal (cf. HANS KELSEN, comentado por O. A. BANDEIRA DE MELLO, “Natureza Jurídica do Estado Federal”, “apud” GERALDO ATALIBA, “Estudos e Pareceres de Direito Tributário”, vol. 3/24-25, 1980, RT). Na realidade, há uma relação de coalescência, na Federação, entre uma ordem jurídica total (que emana
do próprio Estado Federal, enquanto comunidade jurídica total, e que se expressa, formalmente, nas leis nacionais) e uma pluralidade de ordens jurídicas parciais, que resultam da União Federal, dos Estados-membros, do Distrito Federal e dos Municípios.

Nesse contexto, as comunidades jurídicas parciais são responsáveis pela instauração de ordens normativas igualmente parciais, sendo algumas de natureza central, imputáveis, nessa hipótese, à União (enquanto pessoa política de caráter central e interno) e outras de natureza regional (Estados-membros/Distrito Federal) ou de caráter local (Municípios),
enquanto comunidades periféricas revestidas de autonomia institucional. Cabe advertir, portanto, que o Estado Federal brasileiro - expressão institucional da comunidade jurídica total, que detém “o monopólio da personalidade internacional” (PAULO BONAVIDES, “Ciência Política”, p. 197, item n. 3.1, 14ª ed., 2007, Malheiros) - não se confunde com a União, pessoa
jurídica de direito público interno, que se qualifica, nessa condição, como simples ordem ou comunidade meramente central, tal como assinala, em preciso magistério, o saudoso e eminente VICTOR NUNES LEAL (“Problemas de Direito Público”, p. 160/161, item n. 1, 1960, Forense):

“Com aquela corrente se harmoniza a concepção de KELSEN, segundo a qual, nas federações, existe uma ordem jurídica 'total', acima das ordens jurídicas central e estadual, as quais serão, em face da primeira, ordens jurídicas 'parciais'. 'As normas centrais - diz êle - formam uma ordem jurídica central, pela qual se acha constituída uma comunidade jurídica parcial, compreendendo todos os indivíduos que residem em todo o território do Estado Federal. Essa comunidade parcial, constituída pela ordem jurídica central, chama-se 'União'. Ela é parte do Estado Federal total, no sentido em que a ordem jurídica central é parte da ordem jurídica total do Estado Federal. As normas locais, válidas apenas para determinadas partes do território inteiro, formam ordens jurídicas locais, pelas quais se acham constituídas comunidades jurídicas parciais.

Cada comunidade jurídica parcial compreende os indivíduos que residem num dêsses territórios parciais. Essas comunidades jurídicas parciais são os 'Estados-membros'. Cada indivíduo pertence, assim, simultâneamente, a um Estado-membro e à União.

O Estado Federal, ou a comunidade jurídica total, consiste assim da União, que é uma comunidade jurídica central, como dos Estados-membros, que são várias comunidades jurídicas locais. A doutrina tradicional errôneamente identifica a União com o Estado Federal total. Cada uma das comunidades parciais, tanto a União como os Estados-membros, baseia-se na sua própria constituição - a constituição da União e a constituição do Estado-membro. Todavia, a constituição da União, chamada 'Constituição Federal', é, ao mesmo tempo, a constituição do Estado Federal total'.” (grifei) Estabelecidas tais premissas, tornase
possível constatar que a vedação constitucional em causa, fundada no art. 151, III, da Constituição, incide, unicamente, sobre a União Federal, enquanto pessoa jurídica de direito público interno, responsável, nessa específica condição, pela instauração de uma ordem normativa autônoma meramente parcial, inconfundível com a posição institucional de soberania do Estado Federal brasileiro, que ostenta, este sim, a qualidade de sujeito de direito internacional público e que constitui, no plano de nossa organização política, a expressão mesma de uma comunidade jurídica global, investida do poder de gerar uma ordem
normativa de dimensão nacional e total, essencialmente diversa, em autoridade, eficácia e aplicabilidade, daquela que se consubstancia nas leis e atos de caráter simplesmente federal. Sob tal perspectiva, nada impede que o Estado Federal brasileiro celebre tratados internacionais que veiculem cláusulas de exoneração tributária, em matéria de ISS, pois a República
Federativa do Brasil, ao exercer o seu treaty-making power, estará praticando ato legítimo que se inclui na esfera de suas prerrogativas como pessoa jurídica de direito internacional público, que detém - em face das unidades meramente federadas - o monopólio da soberania e da personalidade internacional. Na realidade, a cláusula de vedação inscrita no art. 151, III, da
Constituição é inoponível ao Estado Federal brasileiro (vale dizer, à República Federativa do Brasil), incidindo, unicamente, no plano das relações institucionais domésticas que se estabelecem entre as pessoas políticas de direito público interno. Por isso
mesmo, entendo que se revela possível, à República Federativa do Brasil, em sua qualidade de sujeito de direito internacional público, conceder isenção, em matéria de ISS, mediante tratado internacional, sem que, ao assim proceder, incida em transgressão ao que dispõe o art. 151, III, da Constituição, pois tal regra constitucional destina-se, em sua eficácia, a vincular,
unicamente, a União, enquanto entidade estatal de direito público interno, rigorosamente parificada, nessa específica condição institucional, às demais comunidades jurídicas parciais, de dimensão meramente regional e local, como o são os Estadosmembros e os Municípios. Cabe referir, neste ponto, a valiosa lição expendida por JOSÉ SOUTO MAIOR BORGES (“Isenções em
Tratados Internacionais de Impostos dos Estados-membros e Municípios”, “in” “Direito Tributário - Estudos em homenagem a Geraldo Ataliba”, vol. 1/166-178, 176-177, item n. 5, 1997, Malheiros), que assim se pronuncia a respeito do regime constitucional das isenções decorrentes de tratados internacionais: “5.1 A União é uma pessoa jurídica de direito público
interno. Por isso o exercício de sua competência, no direito interno, pode ser contrastado com o da competência estadual e municipal, dado que são ordens jurídicas parciais, como visto. Daí a proibição de instituir a União isenções de impostos estaduais e municipais. Não se deve confundir a República Federativa do Brasil com uma entidade que a integra - a União, que
não é sujeito de direito internacional. Muito menos os Estados-membros e Municípios. Nenhum desses é em si mesmo dotado de personalidade internacional. 5.2 Constitui, porém, equívoco elementar transportar os critérios constitucionais de repartição das competências para o plano das relações interestatais. Essas reclamam paradigma diverso de análise. Nesse campo, como já o fizera dantes com as leis nacionais, a CF dá à União competência para vincular o Estado brasileiro em nome dela e também dos Estados-membros e Municípios. A procedência dessa ponderação é corroborada pelo art. 5º, § 2º, da CF, in fine, ao referir expressamente os 'tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil (sic: não a União Federal) é parte'. São, pois, áreas diversas e autônomas de vinculação jurídica.

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(...) Que um agente ou órgão da União, o Presidente da República ou Ministro de Estado, subscreva um tratado não significa que os Estados e Municípios estejam pré-excluídos dos vínculos decorrentes da sua celebração. Precisamente o contrário é o que ocorre na hipótese, como a CF, art. 5º, § 2º, in fine, deixa claro. Insiste-se: é a República Federativa do Brasil (CF, arts. 1º e 18) que celebra o tratado e é por ele vinculada, e, portanto, também os Estados-membros e Municípios, e não apenas a União. A esse ato interestatal, o Presidente da República comparece, não como Chefe do Governo Federal, mas como Chefe de Estado.” (grifei) Essa mesma orientação é perfilhada por SACHA CALMON NAVARRO COÊLHO (“Curso de Direito Tributário Brasileiro”, p. 550/551, item n. 11.11, 6ª ed., 2001, Forense), cujo magistério - lúcido e irrepreensível - reconhece a possibilidade constitucional de tratado internacional, celebrado pela República Federativa do Brasil, obrigar Estados-membros e Municípios, notadamente em matéria tributária: “A proibição de isenção heterônoma na ordem interna não deve ser utilizada como argumento para impedir que a República Federativa do Brasil disponha sobre o regime tributário de bens e serviços tributados pelo ICMS e ISS em encerros de tratado internacional. De tudo quanto vimos, sobraram as seguintes conclusões: A) a Constituição reconhece o tratado como fonte de direitos; B) o tratado, assinado pelo Presidente ou Ministro plenipotenciário e autorizado pelo Congresso, empenha a vontade de todos os brasileiros, independentemente do estado em que residam; C) o CTN assegura a prevalência do tratado sobre as legislações da União, dos Estados e Municípios; D) a proibição de isenção heterônoma é restrição à competência tributária exonerativa da União como ordem jurídica parcial, e não como pessoa jurídica de Direito Público externo. Procurou-se evitar a hipertrofia da União, e não a representação da Nação na ordem internacional; E) o interesse nacional sobreleva os interesses estaduais e municipais e orienta a exegese dos tratados; F) a competência da União para celebrar tratados em nome e no interesse da República Federativa do Brasil não fere a teoria do federalismo (se é que existe, ante as diversidades históricas das federações), nem arranha o federalismo arrumado na Constituição do Brasil de 1988; G) o federalismo brasileiro é concentracionário, depositando na União a condução dos princípios políticos de coordenação com os demais países.

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O federalismo brasileiro é tal que centraliza na União a condução das políticas mais importantes, mormente no plano externo. Quem tem os fins deve ter os meios. Na âmbito da Organização Internacional do Comércio ou do Mercosul, a previsão, em tratado multilateral, de isenção de produto ou serviço, vale juridicamente. Caso contrário, seria a inabilitação da União para as políticas de harmonização tributária, justamente ele que detém a representaçãoda República Federativa do Brasil, embora sejam o ICMS e o ISS impostos de competência estadual e municipal.” (grifei) Daí o inteiro acerto da tese daqueles que sustentam, com apoio em autorizado magistério doutrinário, que a Constituição da República não impede que o Estado Federal brasileiro (expressão da comunidade jurídica total) conceda, em sede convencional, mediante tratado internacional, isenção em tema de impostos sujeitos à competência dos Estados-membros e/ou dos Municípios, pois, consoante já se decidiu na ADI 1.600/DF, no voto então proferido pelo eminente Ministro NELSON JOBIM, “O âmbito de aplicação do art. 151, da CF, em todos os seus incisos, é o das relações das entidades federadas, entre si. Não tem por objeto a União Federal quando esta se apresenta como a República Federativa do Brasil, na ordem externa” (grifei). O exame da presente causa evidencia que o acórdão ora impugnado ajusta-se à diretriz jurisprudencial que esta Suprema Corte firmou na matéria em referência.

Sendo assim, e considerando as razões expostas, conheço do presente recurso extraordinário, para negar-lhe provimento. Publique-se. Brasília, 11 de abril de 2008. Ministro CELSO DE MELLO Relator

Legislação

LEG-FED CF ANO-1988
ART-00001 ART-00005 PAR-00002 ART-00018
ART-00151 INC-00003
CF-1988 CONSTITUIÇÃO FEDERAL
LEG-FED LEI-005172 ANO-1966
ART-00098
CTN-1966 CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL
LEG-FED DEC-002142 ANO-1997
DECRETO
LEG-FED DLG-000128 ANO-1996
DECRETO LEGISLATIVO
Observação
Legislação feita por:(LSC).
fim do documento

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